Infeção por SARS-CoV-2/COVID-19 e População Sem-Abrigo
Escrito por:
Pedro Frias (Interno de Formação Específica de Psiquiatria e supervisor clínico do GIRUGaia – APDES),
Joana Vilares (Assistente Social do GIRUGaia – APDES).
A maioria das infeções (~80%) por SARS-CoV-2 apresentam-se com sintomas leves, semelhantes a gripe, e a Direção Geral de Saúde recomenda a todos os doentes com sintomas compatíveis com COVID-19 e estabilidade clínica a Permanência em Casa em contexto de isolamento social, por forma a manter o controlo da propagação da doença.
Uma percentagem de infetados com sintomas mais graves (aproximadamente 14%) necessitarão de hospitalização e alguns deles em estado crítico (aproximadamente 5%) necessitarão de internamento em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI).
As taxas de Mortalidade são sobretudo elevadas para indivíduos acima dos 60 anos, e aumentam consideravelmente para indivíduos maiores de 70 e maiores de 80 anos. Várias comorbilidades médicas contribuem para o aumento da mortalidade, nomeadamente doença cardiovascular, diabetes, Doença respiratória Crónica, Hipertensão Arterial, Doença Oncológica e Imunossupressão.
A taxa de mortalidade aumenta com o número de comorbilidades associadas, sendo que, considerando as mortes em Itália, um estudo revela que 48% dos que faleceram apresentavam 3 ou mais destas condições em concomitância.
A taxa de contágio estima-se que esteja entre 1.5 e 3.5; ou seja, cada pessoa infetada contagiará em média 2 pessoas. O período de incubação da doença situa-se entre os 2 e os 14 dias.
O Vírus pode transmitir-se através de:
– Via de contacto direta: Disseminação de gotículas respiratórias, produzidas quando um indivíduo infetado tosse, espirra ou fala, que podem ser inaladas ou através do toque na boca, olhos ou nariz dos que estão próximos.
– Via de Contacto Indireta: Através do contacto das mãos com superfícies contaminadas e, em seguida, com a própria boca, nariz ou olhos.
População Sem Abrigo – Especificidades
A população em situação de sem abrigo caracteriza-se por residir nas mais precárias condições do ponto de vista sanitário, bem como pela elevada prevalência de patologia crónica, nomeadamente patologias identificadas como fator de risco para a infeção por SARS-CoV-2 (Doença Pulmonar, Hipertensão Arterial, Doença Cardiovascular, Imunodepressão).
Apresentam ainda maior prevalência de doenças infeciosas crónicas, tais como infeção por VIH, VHC e Tuberculose Pulmonar (ou sequelas da mesma), necessitando de cumprir terapêutica farmacológica para o controlo destas patologias e maior prevalência de doença mental e patologia aditiva, com risco elevado de perda da continuidade de cuidados por um período indefinido de tempo em situação de pandemia como a que vivemos. A sua condição de vida a nível alimentar e de higiene e ainda a idade que, apesar não serem, na sua maioria maiores de 70 anos, trata-se de uma população com idade média superior a 40 anos, o que significa que já não são especialmente jovens. Isto, juntando às suas restantes fragilidades, coloca-os numa situação particular de vulnerabilidade sócio sanitária.
Esta vulnerabilidade é tão grave quando para além de poder vir a resultar num desastre humanitário de fatalidade entre este grupo, poderá constituir uma quebra na tão desejada interrupção da cadeia de transmissão do COVID19 – perigo acrescido para a saúde pública no controlo da propagação do COVID19.
A estas características acresce ainda o facto de a população em situação sem abrigo apresentar marcada dificuldade no acesso a cuidados de saúde e ausência de rede de segurança, (familiar ou de sociabilidade) vivem isolados: uns em condições insalubres, nas ruas e sem teto, sem local para hábitos de higiene (como lavar as mãos); outros sem condições físicas, cognitivas, económicas ou mesmo de infraestruturas para se poderem encarregar e autonomizar em tarefas condicionadas em períodos de quarentena (automonitorização do estado de saúde, autoadministração de terapêuticas, contactar o SNS24, confecionar alimentos, fazer compras, por exemplo). Outro problema importante prende-se com a dificuldade na implementação do distanciamento social tendo em conta que as atividades organizadoras da vivência do indivíduo em situação de sem abrigo fazem-se em grande parte em contexto comunitário, com contacto próximo com outros indivíduos e técnicos de saúde ou assistência.
Finalmente, o encerramento ou a dificuldade no acesso a serviços comunitários importantes, terá impacto na população em situação de sem-abrigo, refletindo-se nas suas rotinas e acesso a cuidados de saúde e apoio social. Serviços de distribuição de bens alimentares, de apoio social, as equipas de rua, ou mesmo equipas especializadas, verão a sua atividade reduzida ou condicionada, levando a uma expectável maior concentração de indivíduos para recolha de produtos ou usufruto de serviços nos momentos em que estes sejam disponibilizados. Ainda, o encerramento do pequeno comércio local (cafés, restaurantes e similares), retira da rotina uma resposta informal (da sociedade civil) e um meio de suporte à qual as pessoas em situação de sem-abrigo recorrem, para fazer refeições solidárias e/ou em troca de pequenas tarefas, mas também era aqui que mantinham alguma higiene por acesso a um lavatório (por ex a das mãos…) e alguma sociabilidade. Paralelamente, o desaparecimento do palco da economia informal, à qual muitas pessoas deste grupo recorrem para sobreviver, vai fazer levantar a cortina que esta mesma economia informal escondia – a da pobreza extrema – deixando-os sem capacidade para fazer face às suas necessidades mais básicas. Numa situação normal, pessoas isoladas, em situação de insuficiência económica, no cenário atual, é possível que estejam já mesmo ao abandono, sem qualquer recurso financeiro, sem alternativa nenhuma de contacto humano para a satisfação das suas necessidades básicas. Mais, os serviços formais de ação social, nomeadamente a segurança social e as instituições de apoio social não estavam preparadas para este cenário, logo, não foram previstas verbas para um cenário de carência económica e necessidades deste calibre. Não existe alojamento coletivo-centros de alojamento temporários- em Vila Nova de Gaia para esta população e os da cidade do Porto – a que frequentemente a população de Gaia recorre – são francamente insuficientes face às necessidades, principalmente neste cenário, em que muitos daqueles que não aderiam a respostas ou mesmo aqueles que viviam de uma economia mais informal, vão agora precisar de ser resguardados, satisfazer as necessidades básicas e alimentares outrora satisfeitas no comércio local.
Porque as questões humanitárias se impõem, é dever de todos proteger todos os cidadãos, independentemente da sua condição bio-psico-socio-cultural e das razões macroeconómicas que poderão explicar o fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo. Para evitar aquele que pode vir a ser o grande desastre humanitário entre esta população e porque podem ser veículos fáceis de transmissão do vírus, é urgente a criação de respostas de quarentena, dignas e adaptadas, baseadas num diagnóstico, que possam proteger estes cidadãos especialmente fragilizados de um efeito devastador. Estas respostas deveriam enformar uma abordagem integrada de todas as necessidades básicas destes indivíduos, nomeadamente, alojamento, alimentação, cuidados de saúde e acesso a informação, por forma a diminuir, tanto quanto possível, a circulação das pessoas entre respostas para também diminuir a exposição ao risco.
Medidas Recomendadas:
Segundo a Direção Geral de Saúde (Orientação número 010/2020 de 16/03/2020) o período de quarentena ou isolamento (A aplicar a indivíduos saudáveis com contacto com casos confirmados de COVID-19 ou a indivíduos reconhecidamente identificados como Infetados, respetivamente) deve ser levado a cabo em casa, sem que ocorram deslocações para o trabalho, escola, espaços públicos ou outros locais.
Em casos em que há partilha de habitação com outras pessoas diz-nos a DGS que “se possível, as pessoas com quem coabita devem ficar noutro alojamento. Esta medida é especialmente importante se se tratarem de pessoas mais velhas, com doenças crónicas ou vulneráveis”. Caso não seja possível a permanência em diferentes alojamentos: A pessoa em isolamento/quarentena “deve permanecer separado das outras pessoas em divisão bem ventilada e confortável, com janela para o exterior e porta fechada; Só deve sair do quarto em situação de extrema necessidade e colocando uma máscara descartável; Deve evitar utilizar espaços comuns com outras pessoas presentes, incluindo nos períodos de refeições; Deve manter distância das outras pessoas presentes (…)”.
Na sua Orientação Número 009/2020 datada de 11 de março de 2020 e relativa a Procedimentos para Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI), Unidades de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) da Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCCI) e outras respostas dedicadas a pessoas idosas, que poderá servir como modelo informativo para a aplicação a outras estruturas prestadoras de cuidados a população em risco, a DGS refere que as instituições devem observar a implementação de distanciamento social para todos os doentes com sintomas respiratórios, que devem estar afastados de outras pessoas pelo menos um metro de distância, sendo esta distância de pelo menos dois metros em ambientes fechados e evitar a concentração de residentes em espaços não arejados sempre que possível. Defende ainda a realização de teste laboratorial para SARS-CoV-2 a novos residentes/utentes, que devem, ainda assim, cumprir período de quarentena não inferior a 14 dias
Atendendo às características elencadas da doença, bem como às especificidades da população sem-abrigo acima referidas, esta pode ser considerada simultaneamente como uma população de elevado risco para morbimortalidade por COVID-19, na qual a infeção poderá ter consequências catastróficas, mas também um potencial foco de disseminação da doença pela população. Um plano para o alojamento dos indivíduos em situação de sem abrigo reveste-se de importância e urgência, não só para lhes permitir acompanhamento regular sem colocar em causa a saúde dos mesmos e dos profissionais que prestam apoio, mas também para mais eficazmente controlar a disseminação da infeção.
Pelo facto de existir atualmente disseminação da infeção por SARS-CoV-2 na comunidade (não sendo já possível delimitar as cadeias de transmissão responsáveis por determinado contágio) é de assumir neste momento a elevada probabilidade de alguns indivíduos em situação de sem abrigo, ainda que assintomáticos, sejam portadores da doença, e que outros apresentem sintomas respiratórios. Assim, e partindo das recomendações da DGS, as medidas de alojamento devem ter em conta a importância de garantir um espaço individual com condições mínimas exigidas ao cumprimento de quarentena durante, pelo menos, 14 dias, sob pena de a colocação de um grande número de indivíduos em espaço comum poder criar uma situação de infeção generalizada em todos os co-habitantes (à semelhança do que ocorre, já, em alguns lares de idosos).
Atendendo ao previamente exposto, considera-se que, do ponto de vista clínico, a solução de encontrar uma estrutura física com vários quartos permite o isolamento individual de cada um dos indivíduos em situação de sem abrigo, bem como a possibilidade de prestação de cuidados e apoio de forma simplificada e segura para os técnicos. Do ponto de vista social, e da ação social com vista à melhoria do bem estar e preservação de todos, consideramos que devem ser implementadas estas respostas de isolamento individual, nomeadamente em hotéis e/ou alojamento local, de forma temporária, para proteger do risco e acompanhar o estado de saúde das pessoas em situação de sem-abrigo, diminuindo assim também as cadeias de contagio de COVID19 entre este grupo e deles para a sociedade. Entende-se também que a sinalização dos casos bem como o encaminhamento, deverá ser feito pelos Pares e pelas equipas de proximidade que já atuam junto destes, evitando assim abordagens mais coercivas e menos furtuitas.
Para as situações de carência económica severa de pessoas que recorriam à economia informal e que ficaram sem quaisquer rendimentos, como é o caso de algumas pessoas em situação sem-abrigo mas é também a realidade de muitos outros cidadãos como os Migrantes em situação irregular, considera-se que a criação de um “rendimento temporário de emergência” poderá ser a solução.
Paralelamente, a criação de um fundo de emergência social configura a resposta necessária para fazer face ao exercício da ação social pelas instituições formais, no apoio às situações de carência económica e de caráter emergente. Nunca tivemos a oportunidade de, no caso das pessoas em situação de sem-abrigo e da economia informal, fazer um diagnóstico da situação tão fiel como agora; isto se, a quarentena for obrigatória.